quinta-feira, 6 de agosto de 2015

45 Anos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação da PUCSP

Standard

45 Anos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação (PED): Contribuições e Perspectivas para Questões Educacionais

22 e 23 de setembro de 2014 - PUCSP

Mesa Redonda: Trajetórias de um Programa em Movimento: marcos e marcas

Apresentação de Maria Regina Maluf: Os inícios do Doutorado no PED


Um Curso de Doutorado? Por quê? Para que? A ciência organizada concede o grau acadêmico de doutor por meio de Instituições Acadêmicas credenciadas para certificar quem preencheu requisitos que qualificam para desenvolver investigações num determinado campo científico. Oferecer cursos organizados com esse fim, aos quais todos/as podem ter acesso desde que atendam os critérios previamente anunciados e divulgados, é índice de maturidade dos sistemas educacionais nas sociedades contemporâneas.

As origens do nosso doutorado encontram-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) que entrou em vigor em 1961, incluindo formalmente os cursos de pós-graduação como parte integrante da estrutura da educação brasileira. A formalização dos cursos por meio de legislação específica deu-se por meio do Parecer CFE no. 977/65 aprovado em 3/12/1965. Assinado por figuras proeminentes da época A. Almeida Júnior, Presidente da Comissão de Educação Superior; Clóvis Salgado, José Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Durmeval Trigueiro, Alceu Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Valnir Chagas e Rubens Maciel, teve Newton Sucupira como relator, que hoje está sendo homenageado pela CAPES pela Plataforma Sucupira de informações sobre a pós-graduação.

Como explica o professor Joel Martins (1920-1993) – o idealizador da Pós-Graduação da PUCSP e de nosso Programa, do qual foi criador e coordenador- , quando nosso Programa foi criado a Portaria 77/69, que determinou as normas de credenciamento dos Programas de Pós-Graduação no Brasil, ainda não havia sido publicada, mas havia o parecer 977/65 e sobre essa base teve início o “Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação” da PUCSP, juntamente com os de  Teoria Literária e a Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas. Era o ano de 1969, e os Programas eram todos de Mestrado, visto como etapa preliminar na obtenção do grau de doutor, embora não considerada como condição indispensável. Somente com o amadurecimento paulatino dos Cursos de mestrado começaram a ser criados no Brasil os Cursos de Doutorado, que de acordo com o Parecer “têm por fim proporcionar formação científica ou cultural ampla e aprofundada, desenvolvendo a capacidade de pesquisa e poder criador nos diferentes ramos do saber”. Como o Mestrado, o Doutorado em Psicologia da Educação da PUCSP foi pioneiro, ocorrendo sua criação em 1982.

Até essa segunda etapa, nosso Programa era designado como Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação. Mais tarde, e depois de muitos debates que envolveram discussões de áreas no Setor de Pós-Graduação da PUCSP, optou-se por designa-lo como Programa de Pós-Graduação em Educação (Psicologia da Educação).

Na área de conhecimento da Psicologia da Educação as discussões a respeito das relações entre a Psicologia e a Educação nunca foram consensuais, nem sabemos se poderiam chegar a ser. Como “Programa em Movimento”, título escolhido para esta Mostra, e, em nosso entender, em Movimento têm que estar sempre a pesquisa, a elaboração teórica e a prática, essa é uma questão que continua a exigir nosso estudo, reflexão e debate. Cabe debater e fazer nossas escolhas: Como se relacionam a Psicologia e a Educação? Que Psicologia é essa que fazemos? A que Educação nos referimos? Com que nível do sistema educacional nos preocupamos, considerando desde as creches até os adultos do ensino superior e os excluídos do sistema educacional regular? Qual a relevância de nossas teses teóricas para as práticas educacionais que criamos, mudamos ou reformulamos? Para onde vamos nestes difíceis caminhos da educação brasileira?

O Curso de Doutorado recebe interessados em Psicologia da Educação que de alguma forma já experimentaram a pesquisa, o trabalho acadêmico, o prazer de pesquisar e de estudar. É com a dedicação de todos que podemos multiplicar profissionais e pesquisadores competentes e preparados para dar sua contribuição efetiva para a educação nacional.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O psicólogo escolar e a alfabetização

Standard



“O terceiro de meus filhos não conseguia se alfabetizar. Nem lia nem escrevia, diferentemente dos dois primeiros, que não tiveram esse tipo de problema. Eu recebia comunicados da escola, atendia chamados para ir conversar com a professora, que me dizia que procurasse um psicólogo, para tentar resolver o problema. Um dia, tomei uma decisão. Comprei a cartilha “Caminho Suave”, e comecei a ensiná-lo em casa. Alguns meses depois, recebi comunicado da escola, informando-me que ele estava indo muito bem, e que esse resultado era uma demonstração de como o método construtivista que eles utilizavam era excelente. Bem, resolvi não responder. O garoto estava alfabetizado e isso era o que realmente me interessava”.

Esse relato me foi feito casualmente, um dia destes, por uma vizinha, esposa de um médico professor universitário, que sempre investiu muito na educação dos filhos e os manteve em escolas da rede privada. Relatou-me esse fato quando soube que eu pesquisava na área da alfabetização e quis conversar sobre o que seria realmente isso que denominam construtivismo nas escolas. Bem, não é meu objetivo aqui discutir a questão do construtivismo. Mas sim discutir os vários papeis do psicólogo na educação. Defenderei aqui a tese de que o psicólogo que trabalha com questões relacionadas à escolarização inicial necessita dispor de conhecimentos sobre os processos de aprendizagem e ensino da linguagem escrita, uma vez que uma proporção considerável das crianças que lhe são encaminhadas estão em dificuldade para transpor essa porta de entrada no mundo das sociedades letradas.

Perguntemos inicialmente: o que teria ocorrido se a criança a que se refere o relato que abre este texto, tivesse sido encaminhada para um psicólogo? Estaria ele preparado para compreender a verdadeira origem dessa “queixa escolar”? Disporia esse psicólogo das competências indispensáveis para compreender e atuar apropriadamente junto a crianças no início da escolarização, que lhe são encaminhadas porque “não aprendem”? Em que medida ele estaria alerta para dar-se conta de que o grande desafio nesse momento da vida escolar consiste em aprender a ler, escrever e contar?
A formação e a atuação do psicólogo para atuar em educação tem sido objeto de numerosos estudos brasileiros sobretudo nos últimos 25 anos. Muitas de suas facetas têm sido desveladas, vários aspectos têm sido abordados, em diferentes vertentes. É ampla a bibliografia de que dispomos nessa área e temos conseguido avançar, embora esses avanços ainda se revelem mais nos discursos do que nas práticas. Como ilustração, referiremos algumas publicações mais recentes: Almeida, 2003; Antunes, 2003; Del Prette (Org.) 2001; Machado, 2003; Meira, 2003; Proença, 2003; Maluf, 2003; Yamamoto,1990. Há que se levar em consideração também as dissertações de mestrado e teses de doutorado realizadas na área e que não foram publicadas.

Esse breve olhar retrospectivo nos mostra também que na literatura psicológica da década de 80 ainda havia predominância de relatos de atuações limitativas, descontextualizadas, reprodutivistas porque carentes de reflexão e crítica, por parte dos psicólogos escolares. Sua atuação profissional aparecia centrada em aspectos clínicos e psicométricos, dando sustentação aos mecanismos de exclusão escolar que atingem particularmente as chances de escolarização das crianças provenientes dos extratos mais empobrecidos da população brasileira. Contudo, nesses anos já começavam a surgir análises vigorosas que se insurgiam contra as inadequações e limites da atuação do psicólogo escolar.
O início da década de 90 mostra-nos a presença crescente de relatos e análises que apontam novos caminhos para a formação e atuação do psicólogo na educação, no sentido de questionar as atuações tecnicistas e a aceitação apressada da universalidade de proposições teóricas despidas de seus determinantes históricos e sociais e de afirmar as efetivas relações entre Psicologia e Sociedade.

Nos anos 2000 a psicologia escolar em nosso País, e concomitantemente a atuação profissional do psicólogo na educação, estão entrando em uma nova fase, em que se multiplicam as ações afirmativas que oferecem novas respostas às análises críticas formuladas em períodos anteriores. Percebe-se que as questões específicas do cotidiano escolar são múltiplas e complexas e que, para tratá-las com êxito, um importante papel está reservado aos psicólogos da educação. Sabe-se também que a atuação desse psicólogo de modo algum pode substituir a atuação dos professores, os grandes responsáveis e os primeiros heróis da educação, na medida em que enfrentam a árdua tarefa de trabalhar para atingir seus objetivos educacionais em condições frequentemente adversas, quando se trata da fatia mais empobrecida da população.

A formação básica em Psicologia garante aos psicólogos alguns saberes a respeito do comportamento humano, em seus determinantes individuais e socioculturais. Por outro lado, a literatura a que nos referimos é pródiga em demonstrar, em suas teses, que o psicólogo escolar necessita dispor de conhecimentos sobre educação, tomada em seu sentido mais completo, de suas vertentes filosóficas, políticas, sociais e históricas. A formação básica tem que ser complementada pela formação especializada, que habilita o profissional para uma atuação na área educacional, extremamente complexa por sua própria natureza. O tratamento a ser dado às questões do cotidiano escolar deve passar necessariamente pela competência do profissional em sua área de conhecimento, assim como pelo diálogo, colaboração e solidariedade com o professor, principal ator na cena escolar ao lado de seus alunos.

No entanto, uma questão ainda nos aflige e não a encontramos suficientemente tratada na literatura da área. Refiro-me ao conhecimento, por parte do psicólogo escolar, dos processos psicológicos envolvidos na aquisição da linguagem escrita. Reconhecendo-se que a alfabetização é ainda o grande nó da realidade educacional brasileira, esse conhecimento deveria ser visto como necessário e fundamental.

Com efeito, como todos sabemos, se por um lado a quase a totalidade das crianças brasileiras têm acesso ao ensino fundamental, ou seja, vão à escola para aprender a ler, escrever e contar, por outro lado os indicadores dos resultados obtidos mostram que estamos bem longe dos bons resultados desejados.

Os objetivos da escolarização inicial estão longe de serem atingidos para todas as crianças, sobretudo em se tratando daquelas que são provenientes das populações de baixa renda, que sofrem as consequências da pobreza e que em muitos casos só contam com a escola que frequentam, para caminhar em seu processo de aprendizagem, pois vivem em bairros pobres, excluídos, carentes de bens culturais letrados, e convivem com adultos não escolarizados.

No entanto, se esses objetivos ainda estão distantes, eles não são inatingíveis.

A educação brasileira avançou nos últimos anos e é grande a esperança dos educadores que de diferentes formas lutam e contribuem para que todas as crianças tenham acesso efetivo à cultura letrada, para que a escola cumpra sua tarefa e seus alunos possam ir muito além do ensino fundamental e médio, como cidadãos bem instrumentalizados para o exercício de sua cidadania.
É nesse contexto que colocamos em cena o psicólogo escolar/educacional, como profissional do qual se pode esperar importante contribuição para a solução de problemas que surgem na escola, na medida em que ele dispuser dos conhecimentos que se fazem necessários para uma atuação competente.

Como tem sido visto o psicólogo escolar

O psicólogo escolar tem sido chamado para “resolver os problemas” dos alunos “que não aprendem”. Tem sido chamado para atender o que se convencionou chamar de “queixa escolar”.

Consultemos o dicionário. Uma queixa, além de ser uma lamentação, um gemido, uma expressão de dor e sofrimento, é também um sentimento de mágoa que se guarda de injúria, ofensa ou agravo. É ainda uma advertência ou uma censura. Mais ainda, é a participação por parte de uma autoridade ou superior hierárquico, de qualquer fato merecedor de reparo. Na medicina é a parte importante do relato clínico que levou o paciente ao médico. Então, em se tratando da queixa escolar, quem se “queixa”? Certamente não é a criança. Dificilmente seria a família. Quem se queixa é o professor, ou, generalizando, “a escola”. Mas, há que se reconhecer que a “queixa” surge porque “há um problema”. E esse problema se expressa no aluno.

Como procede o psicólogo educacional que recebe essa “queixa”? Ou melhor, como haverá de proceder o psicólogo de nossos dias? Possui ele os conhecimentos necessários para avaliar e tratar com competência profissional essa questão? É essa a grande questão que nos propomos a abordar aqui, por meio dos conhecimentos psicológicos disponíveis e por meio de reflexões a partir de um caso real.

No momento atual, levando em consideração as análises, críticas e contribuições dos especialistas da área, afirmamos que está surgindo um novo psicólogo escolar, reconhecido mais pelas suas ações inovadoras do que pelo discurso. São psicólogos com familiaridade com a arte de educar e com a instituição escola, conscientes da importância determinante das redes de interações que se estabelecem entre professor e aluno. São psicólogos que reconhecem o valor das pedagogias colaborativas, dos diálogos nas salas de aula, da ajuda mútua através de tutorias, e, sobretudo,conhecem os avanços da ciência psicológica contemporânea.

Esse psicólogo escolar vem adotando novas, criativas e variadas formas de atuação.

No campo do ensino fundamental, em que enfrentamos gravíssimos problemas de ensino decorrentes de várias e diferentes condições que não vamos aqui analisar, cabe ao psicólogo conhecer o processo psicológico através do qual aprendemos a ler e escrever. Esse conhecimento lhe possibilitará uma base segura para identificar problemas e encaminhar soluções.

Esse nosso modo de ver o papel do psicólogo escolar na escolarização inicial, concorda em vários aspectos com idéias e relatos que surgiram de um encontro interinstitucional voltado para a questão da atuação do psicólogo escolar, que ocorreu no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 24 de março de 2004, designado como “I Encontro Interinstitucional de atendimento à queixa escolar” . Dada a multiplicidade de instituições participantes, julgamos que algumas das idéias expressas e discutidas merecem ser aqui relatadas, uma vez que conferem força de evidência ao que aqui expressamos.

Beatriz de Paula Souza referiu-se ao alto índice de encaminhamento de alunos para atendimento psicológico e também à existência em muitas escolas de práticas cotidianas produtoras de dificuldades escolares, como é o caso da rotatividade de professores, dos ciclos e inclusão impostos de forma autoritária, das escolas desorganizadas, das aulas desinteressantes e desestimulantes, e mesmo a presença de preconceitos sociais e raciais, além da falta de suficiente apoio aos professores. Assim a demanda de atendimento infanto-juvenil nas clínicas-escola de cursos de psicologia e em unidades de atendimento do sistema público de saúde chega a atingir a surpreendentemente alta cifra de 70%. Edwiges Silvares relatou que, na escola pesquisada por ela, começou por perguntar quais seriam os problemas que as crianças apresentavam e constatou que em 99% dos casos, havia queixa de mau desempenho escolar. Acrescentou que, em seu trabalho, atentou para a criança, a família e a escola, evitando portanto a observada tendência de centrar-se em apenas uma das vertentes. Gravou em vídeo situações reais de sala de aula, discutindo-as depois com as professoras e muitas delas reconheceram e solicitaram ajuda para enfrentar as dificuldades percebidas, o que foi possível fazer em uma segunda etapa do desenvolvimento de seu projeto. Marilene Proença relatou dados de pesquisa que mostram que, na faixa etária entre 7 e 14 anos, dois terços dos encaminhamentos psicológicos ocorrem por problemas vividos pelas crianças no seu processo de escolarização, ou melhor, no início do processo de alfabetização. Em um dos levantamentos, a média de idade dos encaminhamentos é de 9,3 anos, sendo que 66% dos alunos estão cursando entre a 1a. e a 3a série; 35% deles estão na 2a série.

Estes dados nos parecem suficientes para dar-nos a dimensão do problema que o sistema educacional brasileiro tem que enfrentar nos dias atuais. Considerando-se que estes são dados referentes ao estado de São Paulo, e que, como se sabe, outras regiões do País possuem índices ainda mais elevados de mau resultado no início da escolarização e ainda que alguns estados do sul e sudeste possam apresentar ínices menos elevados, eles estão longe de expressarem a superação da dificuldade de alfabetizar com êxito todas as crianças que já acederam ao ensino fundamental.

Estamos portanto, localizando o cerne da questão do encaminhamento de crianças ao atendimento psicológico na formulação de uma “queixa escolar” por parte das escolas.

Marilene Proença, conforme descrito no referido relatório, apresentou uma leitura dos “prontuários” das crianças, buscando identificar episódios e descrições que traduzissem o sentido dos “problemas de aprendizagem e de comportamento” que estão na origem dos encaminhamentos e encontrou expressões do tipo: “ troca de letras”, “dificuldade em ler as palavras”, “não consegue ler e escreve tudo amontoado”; “ ainda está na fase dos rabiscos”; “não consegue copiar da lousa”; “ dificuldade na coordenação motora fina”; “ não sabe ler e escrever, somente copia,… só conhece a letra A”; “não acerta as contas”; “vai mal em matemática”; “é lento”; “é distraído”; “tem dificuldade em fazer a lição de casa”. Os chamados “problemas de comportamento” também aparecem descritos, como por exemplo: “não responde às chamadas e às perguntas”; “compreende mas não obedece instruções”; “esquece as regras e fala baixo”; “não apresenta ordem em seu caderno”; “não consegue ficar sentado assistindo as aulas”; é muito agressivo”; “briga e faz bagunça; “é calado”; “não fala com a professora, não conversa com os outros, não pede para ir ao banheiro”; “é facilmente enganado pelas outras crianças; não se interessa pela escola, só quer saber de brincar na escola”; “não presta atenção ao que a professora fala”; “muito nervoso, não aceita aprender por medo de errar”.

Tais expressões nos parecem bastante reveladoras de dificuldades próprias do processo inicial de escolarização, particularmente de alfabetização, quando as condições de ensino não estão dando respostas adequadas às necessidades dos alunos. A criança acede à escola com enormes expectativas, desejos, emoções, curiosidade…eu diria também com enorme desejo de aprender o que são essas marcas que ela se habituou a encontrar nas mais diversas situações de seu dia a dia, ainda que essas situações se limitem ao ônibus, às embalagens, aos pedaços de jornais, panfletos ou mesmo livros, sobretudo considerando que a grande maioria delas vive em cidades onde a presença da escrita é mais frequente. A frustação das expectativas passa a ser a grande responsável por condutas caracterizadas como agressivas, desatentas, polarizadas entre inibir-se ou hostilizar.

Proença admite que um dos principais motivos de encaminhamento refere-se ao fato das crianças apresentarem dificuldades em relação à leitura e à escrita.

A “queixa” dirigida aos pais desinformados e frequentemente não-escolarizados, sem oferta de solução a não ser o “encaminhamento clínico a um psicólogo” gera dúvidas e questões, uma vez que se perguntam o que é que o filho tem, pois não vai bem na escola. Será que ele tem problema de cabeça? Mas por si mesmos não chegam a perguntar-se o que é que a escola tem, posto que o filho lá não está aprendendo, e frequentemente a solução que encontram é a punição: bater, surrar, dado que o filho é visto como o único responsável pelo mau desempenho escolar.

É aqui que colocamos nossa questão central: que entendimento possuem os professores a respeito do processo psicológico de aprendizagem da linguagem escrita? E os psicólogos que recebem as crianças encaminhadas por “queixa escolar”, que entendimento possuem a respeito da mesma questão?

Como se chega a ler e escrever?

Reconhecendo, conforme também admite Proença, que quando o psicólogo recebe uma queixa escolar esta se constitui em fragmento de uma complexa rede de relações sociais, há que se defender a urgência de preparar esse profissional para compreender como se dá o processo psicológico de aprender a ler e a escrever, em seu contexto socioeconômico e cultural.

Com o objetivo de contribuir para essa questão, adotaremos aqui a abordagem metacognitiva da aprendizagem da linguagem escrita, adequada aos sistemas alfabéticos de escrita, como é o caso do português brasileiro. O conceito de metalinguagem se refere à consciência da linguagem, à capacidade de pensar e refletir sobre ela (Gombert, 1990). Essa é uma área da pesquisa que se desenvolveu sobretudo nos últimos 10 anos. A consciência da estrutura fonológica das palavras é uma das habilidades que, com maior evidência empírica, vem sendo relacionada com a aquisição da escrita (Santos & Maluf, 2004). Outras habilidades metalinguísticas, além da consciência fonológica, também aparecem como importantes determinantes da facilitação da aprendizagem da leitura, além da consciência do som da linguagem: a habilidade metasintática, metamorfológica, metalexical, metatextual (Barrera, 2003; Ferreira & Spinillo, 2003; Marec-Breton & Gombert, 2004).

Podemos dizer que falar é um processo natural em todos os grupos humanos, uma vez que a fala emerge naturalmente, desde que as crianças se encontrem expostas à fala de seu grupo social. Contrariamente, ler não é um processo natural. A escrita, vista como uma das maiores invenções da humanidade, pois tornou possível o registro da história humana, está ligada às condições de desenvolvimento dos grupos sociais e sua expansão verifica-se em função direta da instalação e crescimento das formas democráticas de organização das sociedades.

Aprender a ler e escrever é aprender um modo completamente novo de compreender e representar o mundo em que vivemos. Ele é precedido pela fala e por outros meios de expressão simbólica (Vygotsky, 1978).

Na medida em que cresce e se desenvolve, a criança expressa formas cada vez mais complexas de comunicação e expressão. No final do segundo ano de vida algumas crianças já dão indícios de interesse pela fala em si, introduzindo variações na oralização e expressando estranheza diante de expressões linguísticas não usuais. Estas manifestações precedem a metalinguagem propriamente dita, que só se manifestará bem mais tarde, como atividade consciente e controlada, em geral no período em que começa a aprender a linguagem escrita. Essas novas possibilidades de processamento linguístico parecem correlacionar-se fortemente com a facilidade ou a dificuldade de aprender a ler e escrever.

A ciência cognitiva da leitura nos mostra que, se bem que o propósito da leitura é a compreensão, ler não é o mesmo que compreender. Para “aprender a ler”é indispensável adquirir as competências necessárias para decodificar, compreendendo o princípio alfabético que consiste em relacionar fonemas e grafemas para representar sons, palavras, pedaços de palavras, frases curtas e longas. É assim que só aprendemos a ler quando adquirimos a competência de representar sons em sinais, ocorrendo o mesmo com a escrita, ou seja, expressamos idéias através de letras que podem ser fonologizadas.

As teorias sobre o reconhecimento das palavras são variadas e têm gerado acalorados debates no que concerne sobretudo às suas implicações pedagógicas.

Um dos modelos de aprendizagem da linguagem escrita que tem se mostrado possuidor de grande poder explicativo é o proposto de Frith (1985), que distingue três grandes etapas na aquisição da capacidade de reconhecimento das palavras escritas.

A etapa logográfica, em que o indivíduo desenvolve estratégias para adivinhar as palavras orais correspondentes às configurações visuais com as quais se depara. Não lê, mas tenta adivinhar. Apoiando-se em alguns indícios, consegue identificar algumas palavras, mas não as lê (exemplo: coca-cola; açucar; o próprio nome em algumas crianças). Nessa etapa, as relações que a criança chega a estabelecer entre configurações escritas e significações não dependem de regras linguísticas gerais.
Na etapa alfabética a novidade é a utilização da mediação fonológica. O leitor principiante precisa investir seu esforço e atenção em colocar em relação a oralidade e a escrita, utilizando regras de conversão fonema e grafema. Isso exige, obviamente, o conhecimento do alfabeto.

A etapa seguinte é denominada ortográfica. As palavras são percebidas como unidades ortográficas. Nesse estágio ocorre a leitura também de palavras irregulares e mesmo de não-palavras. O sistema cognitivo de tratamento da informação acede diretamente à palavra, através de análise linguística, que já não necessita fazer uso da fonetização.

Há formas muito diversas de ensinar. Com todas as metodologias as pessoas acabam por aprender a ler e escrever, pois muitas variáveis interferem. O estudo da teoria e da prática da alfabetização não deve se misturar com a metodologia da alfabetização. O método não é mais do que uma dessas variáveis. Todos os métodos acabam por funcionar e todos têm suas vantagens e desvantagens. É preciso saber o que funciona melhor com estes professores, estas crianças, esta realidade.
Para uma imensa maioria de crianças, a instrução explícita a respeito das relações entre som e letra é uma necessidade. Elas não a descobrem espontaneamente. Sua ausência pode estar na origem de muitos dos chamados distúrbios ou dificuldades de aprendizagem, em crianças no início da escolarização.

Outro fator que interfere com enorme frequência nas dificuldades da aprendizagem da leitura, frequentemente não identificado pelo professor, é o que chamamos de variação linguística (Barrera & Maluf, 2004). Muitas crianças utilizam uma fala não-padrão, própria de seu grupo social ou de sua região de origem. No entanto, o alfabetizador trabalha com o português padrão. Nessas condições a necessária e indispensável correspondência entre som e letra, ou entre fonema e grafema, não ocorre no entendimento da criança, criando-se assim um empecilho impossível de ser ultrapassado pelo aprendiz sem o auxílio do professor.

O psicólogo escolar pode dar importante contribuição quando atua em casos de encaminhamento de crianças com “queixa escolar”, primeiramente quando está preparado por meio do conhecimento da teoria e da prática da alfabetização, porque sabe distinguir entre as necessidades psicopedagógicas e as de caráter clínico-psicológico, sobretudo quando ambas se entrecruzam ou quando as segundas se apresentam em decorrência das primeiras. Sempre que possível, atingirá a família do educando e quando chamado para desenvolver um projeto junto à instituição escolar, junto aos professores, estará instrumentalizado para atuar com competência contribuindo efetivamente com os professores da escola.

Toda criança é capaz de aprender

A intervenção que passamos a relatar tem como objetivo ilustrar algumas questões teórico-práticas, na perspectiva de atuação do psicólogo escolar. Ela se realiza junto a um aluno que parecia estar destinado, aos 7 anos de idade, a engrossar as fileiras dos “incapazes de aprender”. Surgiu casualmente, quando uma amiga telefonou-me pedindo ajuda. Estávamos no início do mês de novembro de 2003.

-Meu funcionário tem um filho de 7 anos na escola. A escola enviou aos pais um documento para “Encaminhamento Médico Psicológico”, assinado pela coordenadora pedagógica, para levar o aluno a um destes endereços (seguia nome e endereço de três faculdades e Universidades que fazem atendimento clínico psicológico). O pai procurou essas instituições e em nenhuma dela sencontrou vaga para o filho. Será que você poderia ajudar a conseguir uma vaga para a criança na PUCSP ou na USP?

Minha primeira reação foi de explicar à minha amiga, em grandes linhas, a problemática que se coloca atualmente no que se refere ao encaminhamento para atendimento psicológico, feito pelas escolas, uma vez que problemas situados claramente no âmbito do ensino são transferidos para a área clínica. Assumindo-se implicitamente que “a criança apresenta problemas”, sem verificação das características do ensino que está sendo oferecido. Perguntei: como é o garoto? Como ele se comporta? Como é a sua linguagem? Ele apresenta, visivelmente, alguma deficiência? Veio a resposta.

-Não! Ele é uma graça de criança. Não tem, à primeira vista, nenhuma deficiência aparente.
-E como são os pais, a família? perguntei novamente.
-Bem, o pai é semi-alfabetizado; é amoroso e dedicado. A mãe veio do campo, nunca foi à escola. É tremendamente exigente com o garoto. E bate muito nele, quando recebe recados da escola dizendo que ele não faz a lição, é distraído, não presta atenção nas aulas. É estressada e colérica. Às vezes é agressiva com a criança; e também com o marido. Chama a criança de burra, diz que ela não aprende mesmo, que não sabe nada.

Pensei comigo mesma: mais um SOS Criança; mais um garoto à beira do naufrágio escolar.

Perguntei: o pai aceitaria que eu atendesse o garoto? Diga a ele que é uma professora que trata desses assuntos, e que se ele e a esposa estiverem de acordo, poderão trazê-lo uma vez por semana (evitei a palvra “psicólogo”, pelas conotações de que se reveste atualmente, junto a esse tipo de população).

Começou assim minha história de psicóloga escolar com Maurício. Por um lado, uma atividade voluntária. Por outro lado, uma investigação acerca das reais possibilidades de aprendizagem de uma criança (considerada incapaz de aprender) quando lhe são dadas condições para isso. Eu me encontrava em condições semelhantes às de um psicólogo em uma unidade básica de saúde, que atende crianças que lhe são encaminhadas com “queixa escolar”: sem condições de trabalhar diretamente com a escola, e atingindo indiretamente a família. Observe-se que, quando por meio do pai e da criança convidei a mãe para vir conversar comigo, ela respondeu que “não iria não; já estava cansada de ouvir queixas do filho na escola, não queria ouvir de novo as mesmas coisas”, e, segundo o pai, advertiu a criança de que não deveria contar que ela batia nele em casa. A grande angústia do pai: “meu filho é doente da cabeça”? Obviamente tranquilizei-o, dizendo-lhe que o garoto era esperto, inteligente, só estava indo mal na escola, mas que nós daríamos um jeito nisso.

Por solicitação da professora, escreví uma declaração atestando que a criança estaria sendo atendida por uma psicóloga, em sessões semanais, para justificar as faltas decorrentes do atendimento, uma vez que o pai só poderia trazer a criança ao ir para o trabalho e não tinha condições de voltar a tempo de deixa-la na escola para as aulas.

Este relato tem algumas características do “estudo de caso”. Pretende testar hipóteses colocando à prova algumas proposições teóricas a respeito da aquisição da linguagem escrita. E desconstruir algumas “crenças” a respeito das razões pelas quais crianças no início da escolarização “não aprendem” e passam a engrossar as fileiras dos repetentes ou permanecem na escola embora continuando a não aprender e saem da escola na condição de “excluídos”.

Um estudo de caso pode servir para aumentar o conhecimento que se possui a respeito de um indivíduo particular, como também pode visar a produção de mudanças nesse indivíduo. É nesta segunda vertente que nos situamos. Com Michel Sabourin (1988), considerarei 4 etapas, nem sempre claramente distinguiveis.

– Em primeiro lugar, tratei de obter a descrição mais completa possivel do que ocorria com a criança objeto de nossa atenção.
– Procurei informações sobre as circunstâncias passadas que levaram à situação presente. Isto me permitiu formular um certo número de hipóteses concernentes aos fatores que estavam regendo a situação presente.
– Tratei então de avaliar as hipóteses sugeridas pelas informações coletadas. Aceitei o pressuposto de que a maior parte dos comportamentos não são determinados por uma causa única. Tratava-se então de eliminar algumas possibilidades e de reduzir assim o número de fatores que provavelmente teriam gerado a situação.
– Na quarta etapa, coloquei à prova algumas hipóteses, aquelas que sobreviveram às etapas anteriores, instaurando uma forma de ação interventiva. Depois seria preciso avaliar novamente o estado atual do “problema” e tentar constatar, a partir daí, se existiam ou não os efeitos da intervenção.

Breve relato da primeira etapa

Como não frequentara a pré-escola, a primeira série do ensino fundamental foi seu primeiro contato com a escola. Nascido em novembro de 1996, teve seu primeiro contato com a escola aos seis anos e 3 meses. É o primeiro filho de mãe analfabeta e pai analfabeto funcional.

O primeiro encontro foi marcado por muita timidez, medo e insegurança. O pai ao chegar expressou diante da criança suas “queixas”, ou melhor, as queixas da escola que ele tornava suas. Deixei que o fizesse diante da criança, em benefício da transparência, e para que Mauricio começasse a perceber que poderia confiar em mim, pois seríamos parceiros.

Era preciso explicar à criança o que é que ela vinha fazer alí. E foi o que fiz. Conversamos sobre a escola, sobre os colegas, a professora, as reclamações que tinham sobre ele, o que diziam os adultos, etc. Olhamos os cadernos, falamos do que gostávamos de fazer. Eu lhe disse do que eu gostava e ele me disse do que ele gostava mais. Terminei dizendo-lhe que eu sabia que ele era um menino esperto e inteligente e que iríamos trabalhar juntos, para que ele aprendesse mais as coisas da escola e ficasse mais adiantado. Fizemos portanto um contrato.

Mauricio mostrou-se um menino extremamente bem comportado, educado, cheio de boas maneiras. Sempre pergunta “se pode”; dificilmente toma alguma iniciativa. Pensa bem antes de dizer qualquer coisa e quando perguntado, repete a pergunta, assim obtendo tempo para pensar antes de responder.
Observando seus cadernos, encontrei enorme quantidade de “escritas”, muitas letras, sílabas e palavras, que sugeriam boa motricidade fina, a tal ponto que acreditei – por pouco tempo- a hipótese de que ele já dominava grande parte do alfabeto.

Pude também, nesses primeiros encontros, ter acesso ao documento de encaminhamento para atendimento psicológico que havia sido encaminhado aos pais pela escola: 4 páginas com questões às quais a professora havia respondido brevemente, do tipo: 23 perguntas amplas sobre comportamento, respondidas em geral com sim ou não, terminando com a resposta à questão 23: “antes de tentar fazer diz que não sei”. As 11 questões sobre organização, tinham a mesma estrutura e terminavam assim: “criança muito distraida, se descuidar não faz nada”. Cinco questões sobre lingua portuguesa e 9 sobre matemática, com quase exclusividade no “não”: não sabe, não consegue, não faz. Na solicitação para destacar os aspectos positivos da criança constava uma breve resposta: “é uma criança que quando chamada atenção, mesmo que momentâneo, obedece voz de chamada”. E finalmente, para “outras observações”: “é um aluno que gosta de cutucar e empurrar os coleguinhas. Quando a professora faz perguntas dificilmente responde. É uma criança ausente, de difícil concentração na aula (viaja). Se deixar fica a aula toda distraido com o seu material escolar. Necessita da ajuda para fazer as atividades, dentro das suas possibilidades”. Ao final do relatório, alguém registrou: encaminhamento para atendimento clínico psicológico.

O pai relata que a mãe veio da roça, nunca foi à escola. Que a filha menor está com 4 anos e fala melhor que ele, fala tudo, -ele mesmo explica- ela vai na creche desde pequena e aprende muito lá.
Em uma das primeiras visitas, afirmei ao pai e em presença da criança: ele é um menino esperto, inteligente, só está com algumas dificuldades porque não fez pré-escola e começou a ir à escola muito cedo, com 6 anos e 3 meses, e ficou atrasado. Mas, agora ele vai recuperar. E, somente para o pai: “cuidado, nunca mais digam a ele que é burro e não aprende. O senhor tem que fazer a sua esposa entender isso. Do contrário, vocês é que vão fazer com que ele fique burro mesmo!”

Logo percebí que Maurício estava longe de compreender o princípio alfabético. Nem mesmo as vogais estava compreendidas no contexto de um sistema alfabético de escrita, pois não conhecia o som que representavam. Desenhava letras. Mesmo no caso da escrita de seu nome.

Teoricamente, poder-se-ia dizer que se encontrava no estágio logográfico da escrita. Não havia compreendido ainda que os sinais que utiliza para escrever representam sons. Faltava-lhe portanto o que se denomina a consciência fonológica. Tentei fazer com que buscasse palavras que começassem ou acabassem com o mesmo som e percebi que tinha grande dificuldade em fazê-lo. Quando solicitado a ler, ou seja, identificar palavras, sua estratégia era a de tentar adivinhar; fazia isso tanto para a leitura quanto para a escrita. Ao utilizar letras, que desenhava com relativa facilidade, não identificava o som que representavam. Por isso, até o seu nome era simplesmente desenhado, apesar das páginas e páginas de “escritas” contidas em seus cadernos escolares.

Dei-me conta de um agravante: sua oralidade repetia o modo de falar dos pais, com uso de uma variação linguística social, expressando-se ademais com pouquíssima articulação vocal. Com essas características de linguagem oral, tinha certamente vários obstáculos a superar para aproximar-se da escrita alfabética.

Fazendo jogos com Mauricio, percebi que ele não conseguia dizer sua idade. Não conhecia as horas (embora o pai lhe tivesse comprado um relógio que ele receberia quando soubesse conhecer as horas, habilidade essa que ninguém lhe ensinava!). Conhecia alguns algarismos, mas com facilidade os invertia, e não os relacionava com quantidades reais. Segurava a caneta ou o lápis em má posição e utilizava estratégias menos apropriadas para uma boa escrita, ou seja, não fazia uso dos movimentos mais adequados para a produção da escrita manual. O mais provável: ninguém lhe havia ensinado os movimentos mais adequados para escrever com eficiência.

A noção de números: desenhava algarismos mas não havia construído a noção de quantidade. Começamos a utilizar objetos que pudessem ser contados, e sem muita dificuldade ele compreendeu que a mesma quantidade, qualquer que fosse o objeto, seria representada pelo mesmo algarismo. Assim, 2 feijões, 2 lápis, 2 cadeiras, etc. E começamos a fazer pequenas somas, primeiro colocando lado a lado os dois conjuntos de objetos e depois representando as quantidades e a soma por meio de algarismos. Não demorou para que ele compreendesse e começasse a fazer suas primeiras continhas.
Foi possível perceber em Mauricio algumas características do assim chamado “desamparo aprendido”. Ele já se convencera de que não era capaz. Assim, surpreendia-se quando verificava o contrário, e ouvia: está vendo como você sabe? Olhe aí, você conseguiu!
Percebi também sua carência de auto-estima e de senso de eficácia, no que diz respeito às atividades escolares. Sim, porque em outros âmbitos suas reações eram outras: gostava dos amigos, de jogar bola, de vídeo-game, de ir passear com o pai, de brincar com os primos…

Segunda etapa: que circunstâncias levaram à situação presente?

Sustentei a hipótese de que, por alguma razão, as relações com a mãe não eram da melhor qualidade afetiva. Mauricio se apegava sempre ao pai. Não mostrava entusiasmo ao referir-se à mãe. De fato, segundo o pai, a mãe é excessivamente exigente, guarda os brinquedos e não o deixa o filho utiliza-los para não quebra-los; pune e bate com frequência.

Mauricio tem uma irmãzinha de 4 anos, que aprendeu a reivindicar com sucesso seus espaços e suas vontades. Há um ano frequenta a creche e ali aprende muito. Até corrige a mãe quando ela “fala errado”. É considerada como mais esperta e mais inteligente do que ele.

Sustentei também a hipótese de que a baixa auto-estima e sua crença na incapacidade de aprender estavam de fato impedindo seu desempenho na escola. As relações com a professora pareciam ser carentes de afetividade. Sequer conseguia dizer qual o nome da professora: esqueço; não, não converso com ela. A variação linguística era também um importante fator que vinha dificultando seu processo de aprendizagem da linguagem escrita.

Passei a conversar bastante com ele, a solicita-lo para nomear objetos em seu campo visual, e, quando pronunciava mal, ou não articulava suficientemente uma palavra, eu o solicitava a repetir comigo, “do jeito que a gente tem que falar na escola”; “olhe a minha boca; olhe onde a gente põe a lingua”; diga comigo. Ele começou logo a fazer grandes progressos. Sobretudo com os S do plural, que ele nunca utilizava.

Vejo Mauricio como um garoto gentil, atento, concentrado. Entende perfeitamente o que lhe é perguntado e reflete antes de responder. Convidado a fazer perguntas, reciprocamente, fica pensando e não se atreve. Mostra um comportamento muito controlado. Não diria que é um comportamento reprimido, mas sim cuidadoso e controlado. Sorri, conversa, mostra interesse por tudo que lhe é proposto. Diz que gosta da professora e da escola, mais do que do pré (uma pequena creche que frequentou por pouco tempo). “Nesta escola tem mais lugar para brincar.” Sobre os amigos, diz que tem amigos. Pergunto quantos amigos. Concentra-se para contar mentalmente; e depois responde: 5. É com eles que joga bola. Desenhar e pintar são atividades atraentes para ele.

Convidado a escrever no computador, dispõe-se mostra algum reconhecimento das letras e ajudado, escolhe escrever o nome próprio, o nome do pai, o nome da irmã. Contudo, ainda não compreendeu como funciona o alfabeto.

Terceira etapa: avaliando as hipóteses sugeridas pelas informações coletadas

Era preciso ajuda-lo a compreender o princípio alfabético; e o sistema numérico. Na escrita manual, a utilizar o lápis na posição mais eficiente.
Desenvolver habilidades metalinguísticas.
Tomar consciência das variações linguísticas.
Desenvolver sua autoconfiança e senso de eficácia.
Dar-lhe oportunidades de fazer escolhas.

Enquanto desenha e pinta, ajudo-o a segurar os lápis de forma apropriada. Ao escrever, trabalhando com letras ou algarismos, refaz os movimentos mais eficientes para a produção dos signos.
Combinamos que vai aprender a ler as horas no relógio. Vai também aprender a dizer o nome dos pais e endereço. E a situar-se no tempo: dias da semana, do mês, ano.
Convidei-o a fazer o que quisesse numa folha de papel. Desenhou. Uma paisagem, com nuvens, sol, casa, arvore representando uma mulher e duas arvorezinhas, uma era menina [menor] e outra era um menino [maior]. Percebi que era uma desenho aprendido. Não sabia muito bem o que estava representando. Mas desenhava com enorme prazer.
Depois pedi que escrevesse o seu nome, o que fez com satisfação. Identificamos os objetos que existiam no desenho. Convidei-o então a escrever novamente o seu nome, segmentando-o de modo a reconhecer os sons. Percebí então que ele não havia ainda compreendido como se combinavam as letras e os sons de seu nome: ele o desenhava, logograficamente. Começamos então a trabalhar a consciência dos sons das vogais. E a juntar as vogais com o M para formar MA; e depois o O.
Quando compreendeu que as vogais representavam sons que eram sempre os mesmos e que podiam ser combinados, mostrou grande satisfação. AI; UI; MIMI; MAU; MIAU; AU AU…
Fizemos também exercícios de consciência lexical, uma vez que ele mostrava dificuldade para separar palavras.
Trabalhamos números: algarismos e adições. Fizemos várias atividades relacionando coisas com sua representação numérica através de algarismos. E pequenas contas de adição, primeiramente com objetos concretos variados e depois com os algarismos.
Só conseguia contar até 10. Fiz com que escrevesse até 20, compreendendo o modo de escrever os algarismos. Convidei-o a exercitar-se em casa, brincando com os números. Mais tarde, continuamos até 100, para que compreendesse o sistema numérico.
Há que se notar que essa criança além do período escolar, frequentava uma classe de recuperação, no segundo período. No entanto, não estava desenvolvendo sua capacidade de pensar. É aqui que coloco a importância do trabalho do psicólogo junto aos professores, para ajudá-los a compreender “como a criança pensa”, e consequentemente, como adaptar o ensino à sua capacidade de pensar, indo muito além do figurativo. Particularmente na alfabetização, como compreender os processos de desenvolvimento da capacidade simbólica, e especialmente, desse conjunto de “símbolos de segunda ordem”, que é o sistema de escrita, no caso o alfabético.
Fazemos muitos exercícios de desenvolvimento da fala, para enfrentar as dificuldades decorrentes do uso de uma linguagem não-padrão: veia [velha]; diretia [diretoria]; muié [mulher]; for [flor]; malelo [amarelo]; sovete [sorvete]; birapera [Ibirapuera]; coptado [computador]; ecola [escola]; prade [padre]; alefante [elefante]; telça [terça], etc.
A partir daí, pronunciamos juntos várias vezes e fomos escrevendo juntos. Mauricio se exercita com prazer e mostra satisfação quando consegue o resultado desejado. Poderia parecer, a primeira vista, que tem dificuldade fonológica estrutural. Contudo, ajudado ele passa a utilizar a lingua padrão, necessária para escrever corretamente. Explico-lhe que é assim que a gente fala na escola; que a mamãe fala de outro jeito porque ela não foi à escola. Mas, quando vamos à escola temos que falar do jeito que está nos livros, para aprender a ler bem.
Continuamos a exercitar pronúncia de palavras e a escrevê-las segmentando-as e o mesmo fazemos com as frases.
A inibição intelectual de mauricio vai diminuindo. Agora ele ousa observar, perguntar, verificar; está menos desatento, interessa-se por livros, jornais, textos, revistas. Contudo, ainda não superou totalmente o hábito -aprendido devido à ansiedade de tentar dar a boa resposta sem ter compreendido-, de tentar adivinhar quando é solicitado a ler ou a escrever uma palavra. Foi o que verifiquei ao fazer um controle, ditando algumas palavras: bicicleta, avião, carro, caminhão, barco, trem. Ele escreveu quaisquer letras, em disposição aparentemente casual.
Não insisti na tarefa e passamos a fazer mais exercícios de oralização: dez coisas que ele vê na sala. Observa, nomeia, diz os nomes no singular e no plural. Quando utiliza variações linguísticas, repetimos juntos as palavras até que se aproximem do português padrão.
Mauricio começa a ler: lê o que tem no caderno, identifica letras, sílabas e palavras impressas em diferentes portadores de texto.
Pela primeira vez, quando o pai chega para busca-lo, lê para ele algumas palavras, “para que ele veja como sabe”. Eu reafirmo para o pai: Mauricio é um menino muito esperto e inteligente. O garoto nos observa mostrando satisfação. Então, pergunto a ele: e então, você é inteligente? um pouquinho inteligente ou muito inteligente ? A resposta tímida: – um pouquinho. Você é muito inteligente! Olhe que eu sou professora e eu sei, e estou dizendo que você é um garoto esperto e inteligente. Ele mostra um sorriso feliz.
O pai relata que a mãe “melhorou um pouco; fala menos essas coisas de que ele não aprende nada; é que a escola reclamava muito e aí ela ficava brava; mas a Vitória, de 4 anos, é muito esperta, parece gente grande e corrige a mãe e os outros quando falam errado. Ela está na creche a aprende muito lá. Com o menino foi diferente. Ele só ficava em casa com a mãe, com a tia, e fala como elas. Quando ele começou na escola, a professora sempre mandava recados dizendo que ele não aprendia. A mãe então batia, castigava, fez até ele dormir no banheiro; trancava ele no banheiro, e coisas assim. Ele tem muitos brinquedos, mas a mãe guarda e não deixa brincar porque ele quebrava os brinquedos. E quando está quebrado a mãe joga fora. Outro dia quebrou um brinquedo, era só uma rodinha, dava até para consertar, mas quando eu cheguei em casa, ela tinha jogado fora”.
Expliquei para o pai que não importa falar assim, que não é errado porque é o jeito que ela aprendeu. Mas que tem o jeito da escola, dos livros e é preciso que a gente fale do jeito da escola para aprender a escrever. Que é preciso falar com o menino, ensinar a falar do jeito da escola, porque a gente escreve como fala. O pai mesmo deu exemplos de “ fala errada”: maleio, muié, etc (embora o pai também utilize algumas variações sociais). Mostrei que se escreve amarelo, então para aprender é preciso dizer amarelo. E assim por diante. Também pedi para explicar para a mãe que é preciso deixa-lo brincar com os brinquedos mesmo que quebre. Guardar para depois não adianta. Nem guardar para quando ele crescer, porque aí não serve mais porque ele já cresceu. Expliquei que ele é inteligente; ficou atrasado na escola porque “era muito pequeno quando começou”; e “a professora não ensinou do jeito que ele precisava para aprender”. Portanto, ele ficou atrasado. Mas não é porque ele não é capaz de aprender.“Viu como ele não tem problema de cabeça? Ele aprendeu tudo que eu ensinei aqui.” Explique para a mãe o que a psicóloga falou. E se a mãe quiser pode vir aqui conversar comigo.
Após dois meses e meio, em fevereiro de 2004, foi possível perceber um salto: Mauricio começa a entender como funciona o principio alfabético. Começou a ler o livro “O Barco”. Identifica letras, silabas e começa a captar palavras. Fizemos um exercício de compreensão, quando percebi que todo o esforço dele estava centrado na decodificação e depois não havia tempo para raciocinar e tentar compreender. A criança principiante tem que se fixar no código e investe nisso toda sua atenção. Deve ser convidada a pensar e a compreender. É um segundo momento. Quando Mauricio decodifica e faz a relação com o significado, mostra-se satisfeito, integrando as duas habilidades. Assim capturou o significado da frase: os rios passam pelas montanhas; vou pescar no rio; saio com meu barco de papel.
Nessa etapa, disponibilizei para ele as 27 letras do alfabeto. Ele contou-as. Escreveu os algarismos 27. E surpreendeu-se ao compreender que tudo o que ele via escrito em todos os portadores de texto podia ser escrito com essas 27 letras. As consoantes são letras pintadas em azul; as vogais estão pintadas em vermelho. Ele faz combinações de letras e cria palavras. Também lhe explico que todos os números que existem podem ser escritos com os algarismos que vão de 0 a 9: é para ele uma descoberta.
O que considero importante: a autoconfiança que está mostrando. A eliminação do medo de não aprender. O prazer, o gosto de descobrir, de perceber que sabe, de ser reconhecido como alguém que sabe, que consegue. É uma descoberta.
Em 19 de fevereiro já começou um novo ano escolar e Mauricio tem uma nova professora. Ela pede ao pai que leve uma carta minha solicitando dispensar o menino uma vez por semana. Escrevo a carta e nela explico que os problemas que o garoto enfrenta são psicopedagogicos; começou muito novinho e sem pré-escola. A professora responde enviando uma carta atenciosa e dizendo que concorda em dispensar o garoto da aula uma vez por semana. Pai e filho mostram-se mais contentes com essa professora.
Vai avançando na consciência fonológica; já consegue dizer o som com o qual começam e acabam as palavras. Identifica começos iguais, tanto na fala quanto na grafia.
Começa a interessar-se em decodificar letras e palavras que vê escritas, nos lugares por onde anda, no chocolate que ganhou de presente, na massinha que ganhou.
Sempre dedicamos um tempo para conversar. E me explica porque as vezes vem com o caderno rasgado ou rabiscado. “foi a minha irmã; foi o Guilherme, ele pega as minhas coisas; é pequenininho e fica mexendo nas coisas”. É importante que os educadores toemem consciência das condições de habitação de muitos de seus alunos, em que quase não há privacidade, o número de pessoas no mesmo espaço é elevado, os locais para guardar material escolar são escassos ou mesmo inexistentes.
Mauricio vem fazendo muito progresso. Estimulo sua auto-estima, autoconfiança, a percepção de si como alguém “esperto, inteligente, que tem memória e se lembra das coisas.
Ele agora observa o que está grafado e tenta reconhecer letras, sílabas, palavras. Tenta controlar o hábito já adquirido da tentativa de adivinhação.
Adquiriu consciência fonológica. Agora, quando tenta ler ou escrever, relaciona som e letras, ou seja, relaciona o que pode falar e quer escrever, com as letras que necessita para escrever.
Mostra-se satisfeito e feliz quando escreve ou lê. Diante de uma dificuldade, apela para adivinhar, sem ler. Mas, ajudado, recupera-se logo: não é para adivinhar, é para ler!
Quando quer escrever uma palavra “difícil” ou que não sabe ainda, sempre escrevo para ele e lemos juntos: jacaré; Francisco; barco; índio; casal… Lemos juntos a história dos 3 porquinhos, que o atrai muito. A cada vez que sente dificuldade, é ajudado, o que controla a ansiedade do não saber.
É preciso também respeitar o tempo que ele necessita para suas tentativas; seu tempo de reflexão e de processamento cognitivo. Quando esse tempo se alonga, eu o ajudo. Ao captar o significado, ajudado na leitura, mostra-se satisfeito e feliz.
Vai aprendendo que tudo pode ser escrito e ser lido. Vai aprendendo que se aprende. Supera suas inibições intelectuais, olha à sua volta, reconhece objetos, faz perguntas. E faz relações. “Ah, esse é o bicho que começa com a mesma letra”.
A nova professora da turma de “recuperação” que Mauricio frequenta, escreveu-me um bilhete, perguntando o que ocorria com ele, para que ela pudesse ajuda-lo, pois queria fazer isso. Respondi.
São Paulo, 29 de abril de 2004
Prezada Professora …,,

Lí o bilhete que a senhora enviou. Estou de acordo e agradeço a sua preocupação. Vamos tentar ajudá-lo. Tentarei dizer-lhe aqui, em resumo, o meu parecer.
De fato, o Mauricio está enfrentando algumas dificuldades no seu desenvolvimento pessoal, que refletem na aprendizagem.
Não acredito que ele tenha nenhum tipo de deficiência. É inteligente, esperto, e compreende e resolve bem os problemas práticos.
Ocorre que, iniciou a primeira série muito novo e sem pré-escola; foi ficando atrasado e sem compreender; assim viciou-se em “adivinhar”.
Por outro lado, é uma criança tímida e reprimida; falta-lhe auto-confiança; falta-lhe auto-estima. E, ultimamente, problemas de saúde na família o afetam profundamente, embora ele não demonstre isso.
O essencial, neste momento, é levantar a auto-estima e auto-confiança; e mostrar-lhe que “ele é capaz de aprender”, reforçando os pequenos êxitos. Sobretudo não exigir muito, pois ele fica aflito e aí as coisas se complicam mais.
Podemos ficar em contato.
Cordialmente,
Maria Regina Maluf

Em maio houve um dia em que Mauricio mostrava-se reprimido, medroso, timido, assustado. Verifiquei que o pai sofrera uma queda e estava com problemas graves. Saira de casa em ambulância. Segundo o pai, “quem se assustou foi a filha Vitoria de 4 anos que ficou chorando; mas o Mauricio não reagiu”. Mas na realidade, conversar com Mauricio foi o suficiente para que eu percebesse o quanto ele estava assutado mas não demonstrava. Expliquei para ele o que acontecera, e o que iria acontecer quando o pai passasse pela cirurgia agendada. Expliquei que muitas vezes a gente fica assustado e com medo; e que eu também fico. Falamos de outras coisas, até ele ficar a vontade e alegre. Olhamos os livros de história, lemos os títulos, mostrando a ele que aprender a ler lhe permitiria ler sozinho as histórias. Mostrou-se interessado sobretudo pela história dos 3 porquinhos. Ficou surpreso e feliz quando lhe disse que os livros eram dele. Depois levei-o para a frente de um espelho e fiz com que ele se olhasse e nomeasse as partes do próprio corpo, descrevendo o que via e reconhecendo-se como alguem, amavel, bonito, inteligente…

Depois disso fomos escrever. Provavelmente devido à situação de estresse vivenciada, no início confundia tudo e tentava adivinhar; tinha “esquecido” as letras e palavras que já tinha aprendido. Aos poucos, começou a reconhecer e a produzir letras e palavras. Sempre, lendo o que produzia, mesmo que fossem letras e sílbas ou “palavras” sem sentido. Junto com ele, fomos escrevendo corretamente.
Depois, pedi que escrevesse livremente. Ele foi fazendo tentativas e foi acertando. Então, eu colocava um C com vermelho, o que o deixava muito feliz. No final dessa hora de atendimento, estava feliz, atento, “com memória” de retenção e produzindo algumas palavras.

A influência dos sentimentos e emoções na aprendizagem é claramente posta em evidência.

Na semana seguinte, ele se mostrava ainda afetado pelos episódios ligados ao acidente do pai, e “sem memória”, isto é, esquecia de imediato o que tentava aprender. O pai reclamara novamente de seus esquecimentos, e então conversamos sobre “lembrar”: tem coisas que a gente não quer lembrar porque é ruim, não é? Mauricio faz que sim com a cabeça, com expressao séria e triste.
Digo: -eu também; eu tenho coisas que eu não quero lembrar porque é ruim, porque eu fico triste.
–Ele acena que sim com a cabeça e mostra identificação.
-Mas, a gente precisa lembrar as coisas que a gente aprende na escola. Essas, a gente vai lembrar, certo?
-Faz que sim.
Começamos então a fazer exercícios que se mostravam mais agradáveis e escolhidos por ele mesmo. Na semana seguinte, o episódio parecia ter sido superado.

Quarta etapa
Estamos na quarta etapa. Continuo pondo à prova as hipóteses iniciais. Mauricio necessita apoio psicopedagógico, e não só pedagógico. Com isso quero dizer, como já ficou acima evidenciado, que as dificuldades de aprendizagem estão inseridas em um complexo conjunto de fatores individuais, escolares e familiares. O psicólogo escolar é o profissional competente para enfrentá-los de modo integrado, começando pelo ator principal, o aprendiz. Teoricamente, parece ter atingido a etapa alfabética da escrita.

Cabem aqui algumas reflexões a respeito do papel do psicólogo escolar. O que fazer quando não se tem acesso à escola, mas se tem acesso à criança? Eis aí uma tarefa que com enorme frequência concerne o psicólogo, nos centros de saúde, consultórios e mesmo nos limites da escola. Tarefa da qual ele se desempenhará com competência e excelentes resultados se tiver conhecimento a respeito de como se aprende a ler, a escrever e a contar. O enfoque que propomos é o da atenção às habilidades metalinguísticas (fonológicas, sintáticas, morfológicas, lexicais, textuais), às significações do concreto na matemática, às emoções infantís, às alegrias e ao prazer de aprender.

Terminamos este relato com uma questão deliberadamente provocativa: para onde deve dirigir-se a atividade profissional do psicólogo escolar, solicitado a atender “queixas escolares” relativas a “crianças consideradas incapazes de aprender”? Não basta discutir idéias. Entendemos que essa atividade tem que ser diversificada.

O psicólogo que obtém sucesso em sua atuação na educação fundamental será cada vez mais aquele que se mostrar capaz de favorecer o acesso aos conhecimentos psicológicos para todos os envolvidos no processo educacional. É básico que ele entenda como se dá a aprendizagem do código alfabético, ou seja, a alfabetização, uma vez que essa é a área mais sensível na produção da queixa escolar.

As experiências atualmente relatadas na literatura a respeito da atuação dos psicólogos escolares junto às escolas, professores, famílias, visando contribuir para enfrentar a problemática que está na origem da “queixa escolar” deveriam, em nosso entender, incluir direta e explícitamente o conhecimento psicológico relativo ao processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita. Esta é a nova, importante e criativa tarefa que pode ser assumida com sucesso pelos psicólogos que atendem às demandas provenientes das escolas e professores.

Referências

Almeida, S. F. C. (Org.)2003. Psicologia Escolar. Ética e competências na formação e atuação profissional. Campinas: Alínea.
Antunes, M. A. e colaboradores, A Psicologia Escolar na implementação de Projeto Político-Pedagógico da rede Municipal de Ensino de Guarulhos: construindo um trabalho coletivo. In: M. E. M. Meira & M. A. M. Antunes (Org.) 2003, Psicologia Escolar: Práticas Críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.105-128.
Barrera, S. & Maluf, M. R. (2004) Variação Linguística e Alfabetização: Um estudo com crianças da primeira série do ensino fundamental. Revista de Psicologia Escolar e Educacional. N.8 (1), pp. 35-46.
Barrera, S. Papel facilitador das habilidades metalinguísticas na aprendizagem da linguagem escrita. In: M. R. Maluf (Org.) 2003. Metalinguagem e aquisição da escrita. Contribuições da pesquisa para a prática da alfabetização. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.65-90.
Checchia, A. K. A. & Souza, M. P. R., Queixa Escolar e Atuação Profissional: Apontamentos para a formação de psicólogos. In: M. E. M. Meira & M. A. M. Antunes (Org.) 2003, Psicologia Escolar: Teorias Críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.105-138.
Del Prette, Z. A. P. (Org.). 2001. Psicologia Escolar e Educacional. Saúde e qualidade de vida. Campinas: Alínea.
Ferreira, A. L. & Spinillo, A. G. Desenvolvendo a habilidade de produção de textos em crianças a partir da consciência metatextual. In: M. R. Maluf (Org.) 2003. Metalinguagem e aquisição da escrita. Contribuições da pesquisa para a prática da alfabetização. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.119-148.
Frith, U. (1985). Beneath the surface of developmental dyslexia. In: K. E. Patterson, J. C. Marshall & M. Coltheart (Eds.). Surface dyslexia: neuropsychological and cognitive studies of phonological reading. London: Routledge & Kegan Paul. Pp. 301-330.
Gombert, J. E. (1990). Le développement métalinguistique. Paris: PUF.
Machado, A. M. Os psicólogos trabalhando com a escola: intervenção a serviço do quê? In: M. E. M. Meira & M. A. M. Antunes (Org.) 2003, Psicologia Escolar: Práticas Críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo.Pp. 63-85.
Maluf, M. R., Psicologia Escolar: reafirmando uma nova formação e atuação profissional. In: O. H. Yamamoto & V. V. Gouvea (Org.) 2003. Construindo a Psicologia Brasileira: desafios da ciência e prática psicológica. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.121-138.
Marec-Breton, N. & Gombert, J. E. A dimensão morfológica nos principais modelos de aprendizagem da leitura. In: M. R. Maluf (Org.) 2004. Psicologia Educacional. Questões Contemporâneas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp. 105-122.
Meira, M. E. M., Construindo uma concepção crítica de Psicologia Escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sociohistórica. In: M. E. M. Meira & M. A. M. Antunes (Org.) 2003, Psicologia Escolar: Teorias Críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.13-77.
Sabourin, M. Méthodes d’acquisition des connaissances. In Michele Robert (Org.) 1988.Fondements et étapes de la recherche scientifique en Psychologie, Québec: Edisem Inc., pp. 47-49.
Santos, M. J. & Maluf, M. R. Consciência fonológica e linguagem escrita: efeitos de um programa de intervenção. In: M. R. Maluf (Org.) 2004. Psicologia Educacional. Questões Contemporâneas. São Paulo: Casa do Psicólogo. Pp.91-104.
Vygotsky, L. S. The Prehistory of Written Language. In: Mind in Society. The development of higher psychological processes, Ed. By Michael Cole et al. London: Harvard University Press. Pp.105-120.
Yamamoto,O. H. 1990. A Psicologia Escolar em Natal: características e perspectivas. In: Psicologia, Ciência e Profissão, n. 2,3,4, p. 40-49.3

A questão do inato e do adquirido no estudo do desenvolvimento psicológico: algumas anotações para a disciplina Psicologia do Desenvolvimento II

Standard




Profa. Maria Regina Maluf
IP/USP Novembro de 2002

A controvérsia sobre o papel da hereditariedade e do meio no desenvolvimento da criança é um tema recorrente, sobre o qual pesquisas e debates são realizados, não só na Psicologia, mas também em outras áreas do conhecimento.

O desenvolvimento psicológico é um processo que ocorre num indivíduo humano portador de uma herança genética, situado em um meio social e cultural. A questão da relação entre herança biológica e sociedade está presente de diferentes maneiras nas teorias psicológicas e particularmente nas explicações a respeito de como se dá o desenvolvimento psicológico, estudado em seus diferentes aspectos: psicomotor, emocional, linguístico, perceptivo, operatório.

A partir sobretudo dos anos 80, com os progressos da biologia molecular, dos estudos sobre o cérebro, dos estudos etológicos, da antropologia, das ciências sociais, foi possível identificar o caráter extremamente ideológico de algumas respostas, pretensamente científicas, que colocavam o fundamento da igualdade ou da desigualdade entre os indivíduos na raça, nos genes, no quociente intelectual (QI), na classe social, acabando sempre por justificar as segregações. As pesquisas mais atuais da genética, embriologia, neurobiologia, etologia, sugerem ( Skrzypczak, 1989, p. 95) que, longe de se oporem, a hereditariedade e o meio se completam em seus papéis necessários. Na evolução animal há uma passagem dos comportamentos resultantes de códigos genéticos estritos para outros que não são totalmente programados. Cada ser humano possui as características de sua espécie, mas ao mesmo tempo o código genético permite enormes possibilidades de variação em função do meio educativo. Pode-se dizer que ao nascer o indivíduo apresenta potencialidades que só se atualizarão através de aprendizagens culturais, ou seja, ele nasce apto a adquirir todas as culturas.

É assim que aprendemos a ser brasileiros, chineses, operários, camponeses, delinquentes ou virtuosos, artistas ou professores.

Os seres humanos são iguais em alguns aspectos, semelhantes em outros e únicos em sua identidade. A origem das semelhanças e diferenças ainda não está suficientemente explicada, mas já é possível superar algumas respostas reducionistas. Neste final de século, as novas tendências apontam para a relevância de se estudar a construção cultural do desenvolvimento infantil, implementando pesquisas multidisciplinares e interculturais, e, como apontam Deleau & Weil-Barais (1994), resgatando a importância das pesquisas comparativas renovadas, que se interessam pelas redes de variáveis em interação (Maluf, 1998).

Como lembramos no início destas notas, a questão de saber se as desigualdades são inatas ou adquiridas não obteve ainda respostas definitivas, ou melhor dizendo, com suficientes evidências empíricas para merecerem o estatuto de teses vigorosas. Como lembra Skrzypczak (1989), já Rousseau considerava que na espécie humana são encontrados dois tipos de desigualdades. A primeira, que ele denominava natural ou física, por ser estabelecida pela natureza: diferença de idade, de saúde, de forças corporais e qualidades da mente ou da alma. E a outra, que ele denominava desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos humanos. Aqui situava Rousseau os privilégios de que uns gozam em detrimento dos outros: ser mais rico, mais honrado, mais poderoso.

Podemos perguntar-nos se essa distinção ainda tem sentido nos dias de hoje. Existiriam realmente desigualdades naturais que determinariam qualidades diferentes da mente? As ciências contemporâneas não estariam oferecendo-nos exemplos ainda mais gritantes de desigualdades naturais entre os homens? As desigualdades que vemos na sociedade não deveriam ser vistas como consequências diretas e legítimas das desigualdades naturais, por natureza irredutíveis? Voltamos então à questão inicial: as desigualdades são devidas ao que é inato no ser humano ou àquilo que é adquirido, isto é, às suas aprendizagens sociais?

Ao buscar respostas a estas questões, torna-se indispensável buscar apoio em teses capazes de ir além do caráter mítico e ideológico do nosso discurso. Nessa perspectiva, descobriremos às vezes aceitamos teses sem evidência empírica e que muitas questões, sobretudo no campo da inteligência, são questões que não possuem ainda respostas científicas.

Admitimos, com Bril e Lehalle (1988, p.8), que em nossos dias os comportamentos não devem mais ser vistos como resultantes de uma adição de determinantes genéticos e epigenéticos, cujas partes poderiam ser precisadas. Ao contrário, todo comportamento, toda “potencialidade expressa”e todo desenvolvimento, resultam de uma ação conjunta e interativa desses determinantes.
A evolução nos estudos dos determinantes da conduta (quer se trate de estudos experimentais das relações entre genes e comportamentos, quer se trate de estudar gêmeos e crianças em situação de adoção) levam-nos a admitir que é a relação entre o equipamento genético e as condições do meio que se encontra no coração da construção comportamental e que esta relação é complexa e interativa.
Fizemos aqui apenas algumas considerações sobre uma das questões mais complexas da psicologia do desenvolvimento. Concluímos sinalizando a complexidade das relações entre genes e características fenotípicas. Não há entre genes e meio uma ligação fixa e invariável; ao contrário, deve-se admitir que se encontram em interação. O genoma vem antes, pois está presente desde a fecundação; os elementos do meio exercem influência cronologicamente posterior. Mas, todo comportamento resulta de uma construção e quanto maior a complexidade do genoma, mais numerosos e diversificados são os efeitos do meio. Isto nos impede de dar uma resposta definitiva, no estágio em que se encontram nossos conhecimentos, para a questão de saber qual é a parte respectiva do genoma e qual a parte do meio, mais além de hipóteses desafiadoras, que ainda necessitam comprovação.

Referências
Bril,B. & Lehalle H.(1988) Le développement psychologique est-il universel? Paris, PUF.
Deleau, M. & Weil-Barais, A.(1994) Le développement de l’enfant. Approches comparatives. Paris, P.U.F.
Deleau, M., Inné et Acquis, In: Ghilione & Richard, Cours de Psychologie. Rennes, Centre Nationale, s/d
Maluf, M. R., (1998) Tendências Contemporâneas no Estudo do Desenvolvimento Psicológico e Educação. In: Educação e Formação,Universidade de Taubaté, p. 78-85.
Skrzypczak, J.-F.(1989) L’Inné et l’Acquis. Inégalités “naturelles”, inégalités “sociales”. Lyon, Chronique Sociale.

O Psicólogo Escolar e a Educação: uma prática em questão

Standard
O desenvolvimento da pesquisa brasileira na área da Psicologia vem alcançando nos últimos anos enorme progresso, graças principalmente aos esforços provenientes dos trabalhos realizados em cursos de pós-graduação, que além de atenderem uma demanda reprimida de profissionais da Psicologia e de áreas afins que não haviam tido a oportunidade de prosseguir sua formação, passaram a atrair um número crescente de jovens recém-formados que pleiteiam o mestrado e o doutorado. A formação para a pesquisa, que habitualmente só começava nos cursos de pós-graduação, começa a ocorrer já nos cursos de graduação, estimulada por programas diversos de iniciação. Tais ocorrências nos parecem animadoras, no sentido de que abrem caminhos para maior integração entre os diversos níveis de formação.

Em documento anterior (Maluf, 1996a), tratando das relações entre a graduação e a pós-graduação em Psicologia, já nos referimos a algumas das características desses dois sistemas de ensino, mostrando que, enquanto a pós-graduação evoluiu assistida desde o início por processos de avaliação e acompanhamento que permitiram que predominasse uma certa parcimônia na criação de novos cursos, o que contribuiu para sua consolidação em níveis razoáveis de qualidade, a graduação conservou-se à margem de processos avaliativos, evidenciando-se a partir da década de 70 a explosão desordenada e desprovida de qualquer tipo de controle de novos cursos.

Em 1996 discutia-se a qualidade dos cursos de pós-graduação e também se perguntava se caberia a ela suprir deficiências dos cursos de graduação, que estavam sendo convidados a efetuar reformulações curriculares em decorrência da Lei Darcy Ribeiro, de 1996, que fixou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e eliminou a exigência de um currículo mínimo para os cursos de formação em nível superior.

Decorridos os últimos anos, algumas mudanças nesse panorama ocorreram. Começaram a ser criados procedimentos de avaliação dos cursos de graduação, como instrumentos que visam a melhoria de sua qualidade. Na pós-graduação, ao lado da preocupação com a pesquisa começou a ocupar espaço também a preocupação com a formação do professor para atuar no ensino superior. A relação entre esses dois níveis de ensino vem sendo estimulada, reconhecendo-se que as instituições que contam com esses dois eixos tendem a beneficiar-se das trocas que se estabelecem.

Uma pós-graduação bem sucedida deve implicar na melhoria do nível da graduação, uma vez que ela estará atingindo seus objetivos de formar professores para o ensino superior e pesquisadores. A produção científica da pós-graduação ainda não é suficientemente utilizada na graduação, mas essa questão já ocupa espaço de discussão e alguns procedimentos para divulgação do conhecimento começam a ser implementados.

Por outro lado, é preciso assinalar que continuam a multiplicar-se, de modo desordenado, os cursos de Psicologia no país. Contudo, critérios e experiências de avaliação com implicações para o funcionamento dos mesmos vão aos poucos se impondo. Procura-se elaborar diretrizes curriculares, que possam iluminar as novas propostas de cursos e ao mesmo tempo auxiliar os esforços de reestruturação em andamento em cursos já existentes. Esta é uma tarefa difícil, plena de desafios, uma vez que deve enfrentar a diversidade em sua complexidade. Nos referimos aos trabalhos da “comissão de especialistas em ensino de Psicologia”, formada por membros da comunidade científica da área da Psicologia que a convite do Ministério da Educação vem trabalhando sobre a questão.

Nesse contexto, permanece a pergunta que nos preocupa no decorrer deste texto: que psicólogo queremos formar nos cursos brasileiros de Psicologia e que procedimentos deverão ser adotados? Como preparar o profissional de Psicologia para atuar nos meios educacionais?

O nível normativo de resposta a essa pergunta não é evidentemente suficiente, porém reveste-se de suma importância para o desencadeamento de ações decorrentes.

Tais questões fizeram parte da temática estudada no grupo de trabalho Psicologia Escolar e Educacional, que no VIII Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia) reuniu-se para discuti-lo sob o título de Psicologia e Educação: a articulação pesquisa-prática no novo milênio.

O tema de que nos ocupamos aqui, Psicólogo Escolar e Educação, vem sendo objeto de múltiplos questionamentos. Alguns o colocam sob a mira de uma crítica radical às práticas profissionais do psicólogo escolar, chegando a excluir a possibilidade de que esse profissional possa de fato contribuir para a solução dos problemas que enfrenta o sistema educacional brasileiro. Outros propõem-se a mudar-lhe o nome: não se reconhecendo nas críticas feitas à Psicologia Escolar, aceitam ser designados como psicólogos que trabalham na Educação, não porém como psicólogos escolares! Encontramos também o psicólogo que prefere a designação de psicopedagogo, pretendendo dessa forma dar visibilidade aos seus conhecimentos sobre questões de aprendizagem e fugir ao estereótipo de “aplicador de testes”que freqüentemente acompanha o psicólogo profissional.

Nosso primeiro objetivo aqui é apresentar algumas considerações sobre o estatuto da Psicologia da Educação e da Psicologia Escolar como áreas do conhecimento. Em seguida vamos referir-nos à necessidade de formar profissionais de Psicologia capacitados para o trabalho com Educação, dentro ou fora das instituições escolares. Finalmente, faremos algumas considerações a respeito das possíveis contribuições da pesquisa para a formação do psicólogo que atua em meios educacionais.

Psicologia Educacional/Escolar

A definição dos termos quando colocamos uma questão em debate, se por um lado é indispensável para que exista comunicação entre os interlocutores, por outro lado pode gerar posições rígidas e nominalistas que impedem o avanço da compreensão. As possíveis semelhanças ou diferenças entre o que se denomina Psicologia da Educação e Psicologia Escolar têm sido objeto de várias discussões, não só entre nós no Brasil como também no estrangeiro. Não retomaremos aqui essa discussão, mas para melhor demarcar nosso objeto, vamos fazer algumas considerações.

A Educação é um campo amplo de estudos e aplicações. Em todas as sociedades encontramos formas das mais embrionárias às mais complexas de organizações e estruturas que se propõem a assegurar, de diferentes maneiras, a educação de seus membros. Vamos considerar portanto a Psicologia da Educação como a Psicologia que se faz em meios educacionais. Mialaret (1999, p.3 a 10) admite que praticamente todos os capítulos da Psicologia podem ser aplicados à Educação. Nesse sentido, não lhe agrada substituir o termo Psicologia da Educação por Psicologia Aplicada à Educação, nem por Psicologia e Educação. Concordamos com ele que a designação Psicologia da Educação permite estabelecer uma especificidade e demarcar os limites do conceito, lembrando sempre que uma ampla cultura psicológica é indispensável ao psicólogo da educação, cujo campo de estudos deve constituir-se pela análise psicológica de todas as facetas da realidade educativa, ou seja, pela análise psicológica dos processos educativos.

Consideramos, portanto indispensável que a formação que se oferece ao psicólogo que vai trabalhar nos meios educacionais o capacite para integrar em suas análises e em suas ações a multiplicidade dos componentes das situações educacionais. Cabe lembrar que, entre os vários meios educacionais destaca-se sobremaneira a escola. A Psicologia que se faz na escola é designada por muitos como Psicologia Escolar, mas recebe também a designação de Psicologia Educacional.

Neste contexto, a Psicologia Escolar surge como conceito ligado direta e estreitamente ao campo pedagógico. Alguns preferem designá-la como “Psicologia na Instituição Escolar”, como muito bem mostra Caglar (1996, p.3). Se o conceito de Psicologia Escolar reflete as delimitações epistemológicas da Pedagogia, o segundo, de Psicologia na Instituição Escolar reflete a evolução dos conhecimentos no campo das Ciências Humanas, enriquecendo os estudos de Psicologia Escolar, mas ao mesmo tempo tornando evidentes as dificuldades que se impõem quando se trata de fazer escolhas entre os diferentes referentes epistemológicos que se lhe apresentam.

Em todas as designações mencionadas, trata-se da praxis do psicólogo no campo educativo, onde ele se defronta com a imensa diversidade de zonas de atividades, com a multiplicidade de instrumentos a serem dominados e com a pluralidade de papéis a serem assumidos. Optamos por referir-nos aqui à Psicologia nos Meios Educacionais e especificamente, quando for esse o caso, nos Meios Escolares. Nesse sentido, as designações Psicologia Educacional e Psicologia Escolar podem ser utilizadas como equivalentes, sendo a primeira mais abrangente que a segunda.

Educação e Escola são termos inseparáveis, se assumirmos uma posição epistemológica, como fazemos aqui, segundo a qual a ética é vista como condição necessária de humanização e a instrução ou aprendizagem de conteúdos escolares só se dá no contexto de uma forma própria de encarar os valores pessoais e a vida em sociedade. É necessário enfatizar que, de nosso ponto de vista, a Psicologia Escolar não pode e não deve ser reduzida a uma área de aplicação. O psicólogo situado em meios escolares, tem que reconhecê-los como sendo também meios educacionais. Como pesquisador que ali encontra seu objeto de estudo, ele deve estar preparado para atividades como por exemplo: contribuir para o avanço dos conhecimentos no campo da aprendizagem das matérias escolares; ajudar na compreensão da criança e do jovem, sem reduzi-los à condição de “alunos”; avançar na explicação dos diversos tipos de interação que se instalam como parte constitutiva do processo educacional; e finalmente para estudar em toda sua complexidade os vários fenômenos que são próprios à instituição escolar.

É preciso reconhecer que a Psicologia convive, neste início de um novo século, com paradigmas diversos inspirados por diferentes concepções do real. A pesquisa e a prática da Psicologia Educacional/Escolar defronta-se, constantemente, com o desafio de múltiplas escolhas inspiradas pelas diferenças e pelas preferências dos trabalhadores de uma ciência em construção que paga seu tributo à hegemonia da racionalidade que iluminou o nascimento das ciências modernas desde o século XVI e se estendeu às Ciências Sociais emergentes no século XIX (Maluf, 1999, p. 19). No dizer de Santos (1988, 1989, 2000), novas confianças epistemológicas emergem no panorama atual das ciências, inextricavelmente relacionadas às mudanças nos modos de organizar as sociedades. A nova forma de conhecer, que surge em sociedades já revolucionadas pela ciência, que incorporaram as várias formas de aplicação da técnica e de solução de problemas que caracterizam o mundo atual, possui características próprias em formação e sem menosprezar o conhecimento que produz a tecnologia necessita afirmar-se incluindo outros saberes. Convivemos com profundas discordâncias a respeito do estatuto do saber científico. Este é, em nosso entender, um dos muitos desafios que enfrenta o psicólogo e mais especificamente o psicólogo que trabalha no campo da Educação.

A compreensão do fenômeno educacional em sua complexidade se impõe como condição necessária para o psicólogo que pesquisa e que desenvolve práticas profissionais no campo educacional. Contudo, como muito bem lembra Luna (1999 p. 47), a complexidade, no caso da Educação, decorre particularmente de sua transdisciplinaridade: “Se o fenômeno é transdisciplinar e o pesquisador é limitado à sua competência (relativamente) específica, só haverá crescimento se sua análise puder ser contraposta à de outros profissionais que tenham estudado a questão do ponto de vista da competência de cada um deles”. Quando isto não ocorre, lembra Luna, referindo-se ao que se vem constatando em nosso país, o psicólogo da educação ao se ver criticado pela fragmentação de suas análises, muitas vezes não consegue juntar-se aos outros profissionais que poderiam completá-la e age descaracterizando a Psicologia, que se converte em Sociologia, Economia e às vezes mesmo em política partidária.

O psicólogo que atua nos meios educacionais evitará essas armadilhas através de sólida formação psicológica na sua completude, que exige portanto o aprofundamento nas bases filosóficas e epistemológicas de seu objeto de estudo, mesmo que não exista consenso sobre ele. No início deste novo século parece-me absolutamente inaceitável retroceder para posições que acabavam por restringir a noção de educação à escola ou a noção de psicólogo escolar à atuação sobre alunos com dificuldade de aprender. Ao psicólogo que atua nos meios educacionais cabem tarefas que dizem respeito às interações próprias do processo educacional e das situações de aprendizagem, abrangendo indivíduos, famílias e sociedade. Esse é para nós o perfil do profissional que está sendo designado como psicólogo escolar.

Formação do Psicólogo para o Trabalho em Educação

É preciso reconhecer que em nosso país a formação do psicólogo se apresenta marcada por profunda heterogeneidade. Os níveis de qualidade de formação que se pode esperar dos diferentes cursos e instituições sofrem enormes variações, desde aqueles que podem ser considerados muito bons até aqueles que não resistiriam à aplicação de critérios mínimos de avaliação. As diferenças estão ligadas às características das instituições, às regiões, à disponibilidade de pessoal docente e de recursos materiais. Admitimos um conglomerado de influências, que não podem ser validamente compreendidas através de olhares simplistas, perigosamente dicotômicos e ideologicamente interessados.

Sabe-se também que o sistema educacional brasileiro não consegue hoje atender a demanda de nossos jovens por formação de nível superior. Segundo dados do censo de 1998, o crescimento do nível superior de ensino nos últimos 4 anos foi de 28%, portanto muito maior do que o ocorrido no período de 1980 a 1994, que foi de 20%. Contudo, apesar do crescimento, ele não atende mais do que 7,7% da população brasileira de 20 a 24 anos.

Esse crescimento ocorreu principalmente no setor privado de oferta de ensino superior. O setor público, que mantém Universidades gratuitas distribuídas pelas diferentes regiões do país, enfrenta várias dificuldades e há algum tempo não consegue ampliar suficientemente o número de vagas oferecidas, de modo a atender as solicitações dos jovens que o procuram. Sobretudo, não atende suficientemente a demanda por ensino no período noturno, demanda essa proveniente de um alto percentual de jovens que necessitam compatibilizar estudo e trabalho, e que dedicam-se ao trabalho no período diurno. Por outro lado, a iniciativa privada vem ocupando em ritmo crescente o espaço de oferta que se apresenta. Contudo, como alguns dados de avaliação do sistema superior de ensino vêm demonstrando, já não é mais aceitável afirmar que “o sistema público de ensino é de boa qualidade”enquanto que “o sistema privado é de má qualidade”. Estamos iniciando um novo século e a urgência que se impõe a todos os profissionais responsáveis é a de um compromisso firme e ético com a formação das novas gerações. Este é o grande desafio que hoje enfrentamos: oferecer ensino e oferecer ensino de boa qualidade, encontrando formas colaborativas e solidárias de superar diferenças ligadas às condições regionais, econômicas e sociais.

Tais exigências se apresentam para a formação do psicólogo. Como nos referimos acima, a heterogeneidade entre os cursos de Psicologia quanto aos seus níveis de qualidade é muito grande. Não se trata de analisar aqui os determinantes desse problema. Nosso propósito é muito mais modesto e nos limitaremos a apontar algumas questões que nos parecem relevantes para a reflexão e a prática na área da formação do psicólogo para atuar nos meios educacionais.

Inicialmente queremos insistir na importância do momento atual, para a reformulação dos cursos de Psicologia, em busca de maior qualidade, considerando que segundo a legislação em vigor cabe às universidades a tarefa de fixar os currículos de seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes (art.53, II, Lei Darcy Ribeiro, 1996). Este é certamente um avanço, no sentido de permitir, com maior facilidade e flexibilidade, a modernização das estruturas e dos conteúdos dos cursos, possibilitando acertar os passos com a evolução de todo o conhecimento científico, que tende a ultrapassar barreiras artificialmente impostas pela institucionalização do conhecimento, em direção a aproximações da realidade que sejam multidisciplinares e que melhor respondam às nossas perguntas, formuladas sobre a base de nossas experiências e de todo o conhecimento anterior já acumulado.

Durante a década de 90, várias pesquisas realizadas em cursos de pós-graduação (Yassle, 1990; Rocha, 1991; Caetano, 1992; Ragonesi, 1997; Salazar, 1997; Alves, 1997 ) desvelaram inadequações na atuação do psicólogo em âmbitos educacionais e propuseram alternativas, reportando-se sempre aos cursos de formação. Nós mesmos (Maluf, 1996b), como resultado de pesquisa feita com 129 psicólogos atuantes no Estado de São Paulo, mostramos a predominante insatisfação quanto às instituições e os cursos de Psicologia onde se formaram. Entre os problemas mais apontados encontramos “a desarticulação entre as disciplinas dos cursos”, “a ênfase exclusiva numa área de estágio (geralmente a clínica)”, e o despreparo de muitos professores.

Nesta nova década, pensamos que é preciso retomar os aspectos já analisados tentando verificar se existem mudanças e em que direção elas podem estar ocorrendo. Algumas perguntas já formuladas precisam ser respondidas: todos os cursos de formação vão além da clínica na oferta de estágios aos futuros profissionais? A formação teórica e a formação prática contemplam adequadamente a realidade das populações que freqüentam as escolas brasileiras ? Que lugar ocupa a Educação nas reformulações curriculares dos cursos de Psicologia? Como se apresenta a relação do psicólogo escolar com os testes e medidas tradicionalmente utilizados nos meios escolares? O psicólogo se preocupa em compreender mais amplamente a realidade escolar?

É preciso identificar e acompanhar as novas formas de atuação do psicólogo que estão surgindo, levando em conta as particularidades sociais e culturais dos diferentes meios educacionais. A reflexão e a análise da prática, já a partir dos cursos de formação, deverá capacitar o futuro profissional a reconhecer e lidar com a heterogeneidade das significações culturais.

Na realidade brasileira de início deste novo século os cursos de pós-graduação deverão assumir uma grande responsabilidade no que diz respeito à formação dos novos psicólogos que atuarão nos meios educacionais. Novos modelos de atuação estão sendo criados, mais compatíveis com o tipo de organização social no qual nascem e se desenvolvem os sujeitos da educação, sejam eles professores, alunos, pais, técnicos. Cabe em grande parte à pesquisa que se faz nos cursos de pós-graduação em Psicologia contribuir para os avanços do conhecimento e da prática na área da Psicologia Educacional/Escolar.

Referências Bibliográficas

ALVES, C.F. (1997) A Formação do Psicólogo para o Trabalho em Educação. Uma análise do curso de Psicologia da PUCSP. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação de mestrado).

CAETANO, M. C. (1992) A Representação de Pais de Alunos sobre Atuação do Psicólogo na Escola. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação de mestrado).

CAGLAR, H. (1996) La Psychologie Scolaire. Paris: PUF

LUNA, S. (1999) Psicologia Educacional: tentativa de delimitação do campo. Psicologia da Educação. Revista do Programa de estudos Pós-Graduados, PUC-SP.São Paulo, 9, pp.43-52.

MALUF, M. R. (1996 a). A Relação entre a Graduação e a Pós-Graduação em Psicologia. Em T. F. Carneiro (Org.) Anais. VI Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP.Tomo 2, Rio de Janeiro, pp.34-45.

MALUF, M. R. (1996b) Psicólogo Brasileiro: formação, problemas e perspectivas. Em Bomfim E. M. (Org.) Formações em Psicologia: pós-graduação e graduação. Coletâneas da ANPEPP. Vo. 1, n. 8, pp.71-86.

MALUF, M. R. (1999) Novos Rumos para a Psicologia e os Psicólogos da Educação. Psicologia da Educação. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados PUC/SP. São Paulo, 9, pp.15-41.

MIALARET, G. (1999) Psychologie de l’Éducation. Paris: PUF.

RAGONESI, M.E.M.M. (1997) Psicologia Escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. São Paulo, Universidade de São Paulo (Tese de doutorado).

ROCHA, E. F. (1991) Corpo Deficiente: em busca de reabilitação? São Paulo, Universidade de São Paulo (Dissertação de mestrado).

SALAZAR, R. M. (1997) O Laudo Psicológico e a Classe Especial: uma análise de laudos psicológicos utilizados no encaminhamento de crianças às classes especiais. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação de mestrado).

SANTOS, B. S. (1988) Um Discurso sobre as Ciências na Transição para uma Ciência Pós-Moderna. Estudos Avançados. São Paulo, v. 2, n. 42, pp. 46-71.

SANTOS, B. S. (1989) Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Rio de Janeiro, Graal.

SANTOS, B. S. (2000) A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez.

YASSLE, E. G. (1990) A Formação do Psicólogo Escolar no Estado de São Paulo. Subsídios para uma ação necessária. São Paulo, Pontifícia Universidade de São Paulo (Tese de doutorado).